quinta-feira, 24 de julho de 2008

Alguém devia ter caluniado Josef K.


Um indivíduo acusado, encurralado, encarcerado e eliminado. Isto é a civilização: Kafka criou seu personagem, Josef K., mais um sorteado para lembrar da brutalidade do sistema e perder seus sonhos. Mas o mais importante é que ele perdeu suas ilusões de vida em sociedade. O Estado não é humano. a soma dos servidores públicos, provavelmente despercebidos, não possui nenhuma humanidade; é um “aparelho estatal” que não vê coração, apenas cara-craxá-número, mão-de-obra, parte, parafusos dispensáveis, engrenagens. Leis: só existem para consolidar o genocídio maquinista, o muro opressor de Roger Waters. Não há liberdade, onde há sistema de leis. Não há liberdade, onde há paz.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O mar de todas as ondas


As primeiras torrentes luminosas do Sol do dia nos surpreendem na costa do Atlântico, iluminando levemente as nuvens negro-azuladas da noite. Quando esses primeiros tentáculos do Sol, detrás do horizonte, começam a surgir, todo o espectro da praia se reduz a misturas tonais de azul, preto e branco, que, embora lindo, lembra o maldito tricolor. Aquele seu amarelo ou vermelho não existem nesse espectro, pois as irradiações do Sol não nos vêm diretamente, mas refletidas no céu, no mar, nas nuvens, nos morros e na terra e são poucas e enfraquecidas na escuridão gélida da noite. Contudo, não demoram estes para romper a barreira sombria da noite e tingir o céu de cor do dia. Suas irradiações acordam o próprio vento, que, entretanto, nos dias clássicos, só se fortalece depois do meio-dia, quando muito. Nesses dias sublimes, enquanto descobertas são as nuvens pelos domínios oscilantes do Sol, da mesma forma o são as ondas regulares, bem-formadas sobre a água espelhar do mar que avança e recua sobre a terra firme entre morros verdes. No princípio, é difícil distinguir a marola do resto do mar devido à sua escuridão e à forma excessivamente plana e espelhar da água, mas, transcorrido o tempo do deslumbre de sua beleza, se tornam visíveis, então, ondas imponentes e sedutoras aos olhos humanos. Na beirada, morrem todas, e se conclui o abuso permanente de início e fim de que o mar de ondas é composto. O vem e vai das ondas estourando no rasinho é uma das imagens mais fantásticas da natureza. Sou capturado pelo mar em movimento: semelhantemente aos mares de ressaca, que sugam suas presas pela força, este suga as suas por meio da vontade delas próprias. Este, pois, é o mar da ressaca sedutora, que não hesito em penetrar com a prancha para, com ela, dropar as ondas de minha vida, esta mesma que, pois, é uma das grandes ondas, entre outras, de outra espécie de existência.

Uma onda se origina apenas em ameaça: uma oscilação de longe, lenta, tranqüila. Entretanto, vai crescendo gradualmente, até que sua crista, do alto, clame pelo movimento. No exato instante em que ela grita a formação, estoura em branca espuma, que vai mordendo e engolindo o mar a partir de seu centro em direção às suas extremidades. Dropamos nela desde o início, embora com dificuldade. Quanto mais transcorrido o tempo, dropamo-na melhor, mas com menos velocidade. E vai se encaminhando para o fim, já diminuída em seu porte, uma parede cada vez mais plana e suave, na fraqueza e tristeza do fim. Assim é a vida, e o tudo mais: não há nada que não possa ser comparado com a onda do mar, pois tudo é como uma onda: nasce e começa a morrer. E veja que talvez tudo não seja senão ondas, mecânicas ou eletromagnéticas. A própria matéria torna-se onda e energia como dizia o físico; na oscilação que constitui o Universo.

É precisamente por essa razão que só escrevo sob efeito de certos fumos psicodélicos. Quando estou sob seu magnífico efeito, oscila-se, que nem todas as ondas, meu espectro sensorial. As correntes de verdade penetram-me de modo decisivo: posso perceber a oscilação que a própria verdade possui em sua essência. A restrição imposta pelas bases do desejo, medo ou bloqueio, ou pela própria limitação no aprendizado a cerca do mundo exterior, não são as únicas causas por detrás da impossibilidade do homem de alcançar qualquer verdade absoluta. Creio que a própria verdade possua oscilações, de desconfiável falsidade, em seu curso.

A fumaça penetra-me os pulmões e neles lança seus missionários da sensibilidade. Nos caminhos secretos das mais avançadas membranas da natureza, nossos missionários da embriaguez sóbria travam batalha contra o inimigo. Seu inimigo é a sombra, a escuridão, a convicção arrogante, muito pior que a mentira. Os soldados da maconha não trazem a verdade, mas os segredos das nossas falsas e arrogantes verdades, com que podemos derrotá-las. Essa fumaça é a chave para a verdadeira transcendência, que necessita não apenas da substância, contudo, mas da dedicação honesta do homem que o traga. O homem que o traga sem honesta e profunda vontade de elevação não transcende, apenas se embriaga e tonteia como uma galinha bêbada. Tenho, então, como instrumentos de vida e de ideal, a prancha e a fumaça. Aquela para dropar e esta para voar.

terça-feira, 22 de julho de 2008

deus foi criança, será velho e morrerá.

Sem dúvida, as qualidades do deus das religiões estão ligadas à relação entre pai e filho. Seus princípios variam de religião para religião, mas o espírito de proteção e estimação, contudo, é o mesmo.

Nas palavras de Freud, "deus aparenta ser uma projeção paterna encravada desde cedo na mente humana" ou como muitos religiosos humildes denunciam a origem de sua própria crença, designando a deus o apelido "Pai do Céu". De fato, esse seria o pai eterno, tal qual o filho entendia, enganando-se, a respeito de seu pai na infância. Tal qual muitos acreditavam ou acreditam que fosse a Terra, o Universo, as espécies biológicas.

Mas ele é apenas uma idéia formada na infância, uma idéia infantil: a infância encravada da humanidade. Esta, agora que a supera, chega à puberdade, quando partirá para a maturidade e o infinito aparece em sonho e a razão, livre, estende seu vôo em direção ao desconhecido. Se aquele jovem do qual falamos anteriormente transformou-se de criança para adulto, da mesma forma, todos os seres se transformam e assim toda a matéria. E assim, crescerá e morrerá tal qual seu pai protetor. A eternidade é ilusão dos sentidos. Por trás dela, revelou-se para Darwin um mecanismo milenar, evolucionista: a mudança, única coisa permanente. E foi justamente essa lógica que afastou a filosofia da existência de um deus e a colocou no caminho da ciência.
deus não é o criador do Universo; deus é o pai, que foi criança e que morrerá.

Veja que como ensina a poesia - que é como um tratado - de Drummond

Como um presente

Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.(...)

Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.

Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas. (...)

Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amasse
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim, que te visito. Em ti, a calma. (...)

Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo... encadeados.

Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste. (...)

E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas
sem saca-rolha, de desatar nós, atravessar rios a
cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho, expulsar
assombrações apenas com teu passo duro, o gado
que sumia e voltava, embora a peste varresse as
fazendas, o domínio total sobre irmãos, tios, primos,
camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,
padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos
agitados, animais, coisas:
então não era segredo? (...)


Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo.