quinta-feira, 24 de julho de 2008
Alguém devia ter caluniado Josef K.
quarta-feira, 23 de julho de 2008
O mar de todas as ondas
Uma onda se origina apenas em ameaça: uma oscilação de longe, lenta, tranqüila. Entretanto, vai crescendo gradualmente, até que sua crista, do alto, clame pelo movimento. No exato instante em que ela grita a formação, estoura em branca espuma, que vai mordendo e engolindo o mar a partir de seu centro em direção às suas extremidades. Dropamos nela desde o início, embora com dificuldade. Quanto mais transcorrido o tempo, dropamo-na melhor, mas com menos velocidade. E vai se encaminhando para o fim, já diminuída em seu porte, uma parede cada vez mais plana e suave, na fraqueza e tristeza do fim. Assim é a vida, e o tudo mais: não há nada que não possa ser comparado com a onda do mar, pois tudo é como uma onda: nasce e começa a morrer. E veja que talvez tudo não seja senão ondas, mecânicas ou eletromagnéticas. A própria matéria torna-se onda e energia como dizia o físico; na oscilação que constitui o Universo.
É precisamente por essa razão que só escrevo sob efeito de certos fumos psicodélicos. Quando estou sob seu magnífico efeito, oscila-se, que nem todas as ondas, meu espectro sensorial. As correntes de verdade penetram-me de modo decisivo: posso perceber a oscilação que a própria verdade possui em sua essência. A restrição imposta pelas bases do desejo, medo ou bloqueio, ou pela própria limitação no aprendizado a cerca do mundo exterior, não são as únicas causas por detrás da impossibilidade do homem de alcançar qualquer verdade absoluta. Creio que a própria verdade possua oscilações, de desconfiável falsidade, em seu curso.
terça-feira, 22 de julho de 2008
deus foi criança, será velho e morrerá.
Nas palavras de Freud, "deus aparenta ser uma projeção paterna encravada desde cedo na mente humana" ou como muitos religiosos humildes denunciam a origem de sua própria crença, designando a deus o apelido "Pai do Céu". De fato, esse seria o pai eterno, tal qual o filho entendia, enganando-se, a respeito de seu pai na infância. Tal qual muitos acreditavam ou acreditam que fosse a Terra, o Universo, as espécies biológicas.
Mas ele é apenas uma idéia formada na infância, uma idéia infantil: a infância encravada da humanidade. Esta, agora que a supera, chega à puberdade, quando partirá para a maturidade e o infinito aparece em sonho e a razão, livre, estende seu vôo em direção ao desconhecido. Se aquele jovem do qual falamos anteriormente transformou-se de criança para adulto, da mesma forma, todos os seres se transformam e assim toda a matéria. E assim, crescerá e morrerá tal qual seu pai protetor. A eternidade é ilusão dos sentidos. Por trás dela, revelou-se para Darwin um mecanismo milenar, evolucionista: a mudança, única coisa permanente. E foi justamente essa lógica que afastou a filosofia da existência de um deus e a colocou no caminho da ciência. deus não é o criador do Universo; deus é o pai, que foi criança e que morrerá.
Veja que como ensina a poesia - que é como um tratado - de Drummond
Como um presente
Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.(...)
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.
Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas. (...)
Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amasse
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim, que te visito. Em ti, a calma. (...)
Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo... encadeados.
Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste. (...)
E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas
sem saca-rolha, de desatar nós, atravessar rios a
cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho, expulsar
assombrações apenas com teu passo duro, o gado
que sumia e voltava, embora a peste varresse as
fazendas, o domínio total sobre irmãos, tios, primos,
camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,
padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos
agitados, animais, coisas:
então não era segredo? (...)
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo.